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Firmação
Drawing «is related to life, like drawing breath or a tree drawing nourishment through its roots to draw with its branches the space in which it grows. A river draws the valley ant the salmon the river.»
Andy Goldsworthy
O acto de criar possui substância descritível, racional, pragmática e também poética, inapropriável.
Muitas das respostas contemporâneas são movidas pela intuição. Pode-se considerar deste modo como, através da capacidade de estabelecer ligações céleres entre as coisas. Este acto parece aludir à consolidação do acto criativo construído através de percepções rápidas. Uma das definições de intuição é enquanto acto de ver, um conhecimento directo que não recorre ao raciocínio. E, se esquecermos a alusão à sua dimensão profética, é pensada como uma espécie de instinto. Toda esta tendência intuitiva parece assentar bem tanto no que diz respeito ao acto criativo como ao momento de relacionamento entre o observador e a obra de arte.
A mão relaciona-se, mais directamente, com a expressão da emoção. Do ponto de vista filosófico esta atitude demonstra a aceitação do corpo, dos seus limites e dificuldades. É este auto-conhecimento que vai ser enriquecedor para a experiência estética e para a sublimação das inquietações do artista enquanto ser humano. O desenho manual tem outro tempo, o da realização do traço.
Um factor importante para o conhecimento do desenho remete para o tempo que este necessita. Suscita tempo para ser aprendido e tempo para ser executado. Deste modo a sua situação relativamente à vivência contemporânea reclama um momento de paragem na rápida circulação quotidiana. O tempo, ou seja, a velocidade com que é feito um desenho justifica as suas qualidades de maior ou menor expressividade, maior ou menor preciosismo.
A relação do Homem com o tempo implica sempre factores que remetem para a análise da sua condição. O modo como se relaciona com a passagem do tempo está interligado à forma de encarar a finitude da vida. O desenho caracteriza-se como uma espécie de meditação física e espiritual e um modo de prender uma ideia numa dada superfície. Ele deseja conservar na memória algo. De certo modo ambiciona uma prevalência temporal daquilo que aborda.
Sobre memória e tempo na obra de Milan Kundera, A Lentidão:
«Talvez o seguinte: o homem inclina-se para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se no segundo presente do seu voo; agarra-se a um fragmento do tempo cortado tanto do passado como do futuro; é arrancado à continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está num estado de êxtase; nesse estado, nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das suas preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si próprio e do tempo da sua vida. Tudo muda quando o homem delega a faculdade da velocidade numa máquina: a partir de então, o seu corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.»[i]
A partir da memória aprendemos através da experiência e é esse acumular de informações que nos diferencia. A memória lembra-nos a transitoriedade da vida e da consciência.
Deste modo através do desenho consegue-se a criação de uma referência a determinado momento, situação e período temporal. Ele e a própria arte apresentam-se como uma força de resistência à diluição do Homem e da sua vida. Através da observação de uma obra de arte somos reportados para o contexto em que a mesma foi criada e para as questões desse espaço e tempo específicos. São estas características que permitem ao Homem uma auto-sublimação.
Retoma-se uma necessidade meditativa. O recuperar do desenho traduz a necessidade do Homem regressar ao silêncio, à lentidão.
Assimilam-se diferentes perspectivas, diferentes pontos de vista que antes não eram considerados. Por exemplo na cultura chinesa o vazio assume importância devido às dissertações filosóficas sobre o mesmo, caso de Lao Tse. Neste caso, o vácuo torna-se o elemento central de toda a doutrina. O Nada participa na origem, sendo tido como infinito e desmedido. O vazio encontra-se no que é ainda inexistente e no fenómeno, interligados entre si. A forma destaca-se pela sua relação com esse nada. O que nos interessa neste ponto é a importância dada ao vazio, à sua existência, interferência em relação ao traço que o invade.
Ocorre também, um resgate da capacidade xamanística do acto criativo. Joseph Beuys defendeu que o caminho para o Homem se encontrar a si próprio seria através da Arte. Desenvolveu uma filosofia espiritual mais próxima das formas orgânicas e da natureza. Atentou que acto criativo não pretende satisfazer nenhuma necessidade nem se compromete com nenhum padrão moral. Deste modo o Homem ultrapassa-se a si mesmo escapando da sua vertente animal e racional. A arte teria uma função terapêutica ao curar a espiritualidade humana.
Para a análise do meu corpo de trabalho é fundamental realçar a importância do desenho. O desenho que, de modo intuitivo, conjuga a cultura com a fisicalidade.
O conceito de mutação, transformação remete para a fluidez, algo que existe em movimento. A obra visual pode ser aqui pensada enquanto determinado estado de suspensão.
A necessidade psicológica ou capacidade criativa de atribuir formas concretas a imagens abstractas é também motor de interesse. O Homem tem como tendência auto-projectar-se no mundo que o rodeia e reconhecer em algo, aparentemente comum e banal, imagens próprias. As imagens são usadas como estímulo ao surgimento do desenho.
A gravação, a descrição por meio da linha fazem-se como tentativa de evitar o desvanecimento da memória. A memória como evocação do passado, refere-se também à acção do Tempo sobre nós. Segundo Marcel Proust, a memória é a garantia da nossa identidade, uma vez que reúne o nosso passado ao que somos. É inseparável da consciência do tempo, da sua percepção como algo que escoa ou passa. O tempo implica sempre uma duração limitada, uma oportunidade de vivência. A memória e a própria criação artística são uma afirmação de existência.
A memória faz parte dessa consciência. Esquecer, é sempre perder alguma coisa. Por outro lado o esquecimento é também necessário ao equilíbrio psicológico. A memória é uma das formas fundamentais da existência humana, fundamental para a individualização e identidade. A ligação entre o desenho e a memória é forte, uma vez que ele serve como registo. Daqui pode-se depreender uma espécie de sentimento de posse sobre o motivo, daqui a Firmação.
Ana Neves
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