quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Exposição Firmação

Dia 10 de Setembro, às 21.30h inauguração da exposição na Galeria João Pedro Rodrigues.


Rua Nossa Senhora de Fátima nº 268 Porto






Firmação

Drawing «is related to life, like drawing breath or a tree drawing nourishment through its roots to draw with its branches the space in which it grows. A river draws the valley ant the salmon the river.»
                                                                                 Andy Goldsworthy


   O acto de criar possui substância descritível, racional, pragmática e também poética, inapropriável.
Muitas das respostas contemporâneas são movidas pela intuição. Pode-se considerar deste modo como, através da capacidade de estabelecer ligações céleres entre as coisas. Este acto parece aludir à consolidação do acto criativo construído através de percepções rápidas. Uma das definições de intuição é enquanto acto de ver, um conhecimento directo que não recorre ao raciocínio. E, se esquecermos a alusão à sua dimensão profética, é pensada como uma espécie de instinto. Toda esta tendência intuitiva parece assentar bem tanto no que diz respeito ao acto criativo como ao momento de relacionamento entre o observador e a obra de arte.  
   A mão relaciona-se, mais directamente, com a expressão da emoção. Do ponto de vista filosófico esta atitude demonstra a aceitação do corpo, dos seus limites e dificuldades. É este auto-conhecimento que vai ser enriquecedor para a experiência estética e para a sublimação das inquietações do artista enquanto ser humano. O desenho manual tem outro tempo, o da realização do traço.
   Um factor importante para o conhecimento do desenho remete para o tempo que este necessita. Suscita tempo para ser aprendido e tempo para ser executado. Deste modo a sua situação relativamente à vivência contemporânea reclama um momento de paragem na rápida circulação quotidiana. O tempo, ou seja, a velocidade com que é feito um desenho justifica as suas qualidades de maior ou menor expressividade, maior ou menor preciosismo.
A relação do Homem com o tempo implica sempre factores que remetem para a análise da sua condição. O modo como se relaciona com a passagem do tempo está interligado à forma de encarar a finitude da vida. O desenho caracteriza-se como uma espécie de meditação física e espiritual e um modo de prender uma ideia numa dada superfície. Ele deseja conservar na memória algo. De certo modo ambiciona uma prevalência temporal daquilo que aborda.
Sobre memória e tempo na obra de Milan Kundera, A Lentidão:

«Talvez o seguinte: o homem inclina-se para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se no segundo presente do seu voo; agarra-se a um fragmento do tempo cortado tanto do passado como do futuro; é arrancado à continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está num estado de êxtase; nesse estado, nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das suas preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si próprio e do tempo da sua vida. Tudo muda quando o homem delega a faculdade da velocidade numa máquina: a partir de então, o seu corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.»[i] 

A partir da memória aprendemos através da experiência e é esse acumular de informações que nos diferencia. A memória lembra-nos a transitoriedade da vida e da consciência. 
Deste modo através do desenho consegue-se a criação de uma referência a determinado momento, situação e período temporal. Ele e a própria arte apresentam-se como uma força de resistência à diluição do Homem e da sua vida. Através da observação de uma obra de arte somos reportados para o contexto em que a mesma foi criada e para as questões desse espaço e tempo específicos. São estas características que permitem ao Homem uma auto-sublimação.
Retoma-se uma necessidade meditativa. O recuperar do desenho traduz a necessidade do Homem regressar ao silêncio, à lentidão.
Assimilam-se diferentes perspectivas, diferentes pontos de vista que antes não eram considerados. Por exemplo na cultura chinesa o vazio assume importância devido às dissertações filosóficas sobre o mesmo, caso de Lao Tse. Neste caso, o vácuo torna-se o elemento central de toda a doutrina. O Nada participa na origem, sendo tido como infinito e desmedido. O vazio encontra-se no que é ainda inexistente e no fenómeno, interligados entre si. A forma destaca-se pela sua relação com esse nada. O que nos interessa neste ponto é a importância dada ao vazio, à sua existência, interferência em relação ao traço que o invade.
Ocorre também, um resgate da capacidade xamanística do acto criativo. Joseph Beuys defendeu que o caminho para o Homem se encontrar a si próprio seria através da Arte. Desenvolveu uma filosofia espiritual mais próxima das formas orgânicas e da natureza. Atentou que acto criativo não pretende satisfazer nenhuma necessidade nem se compromete com nenhum padrão moral. Deste modo o Homem ultrapassa-se a si mesmo escapando da sua vertente animal e racional. A arte teria uma função terapêutica ao curar a espiritualidade humana. 

   Para a análise do meu corpo de trabalho é fundamental realçar a importância do desenho. O desenho que, de modo intuitivo, conjuga a cultura com a fisicalidade.
O conceito de mutação, transformação remete para a fluidez, algo que existe em movimento. A obra visual pode ser aqui pensada enquanto determinado estado de suspensão.
   A necessidade psicológica ou capacidade criativa de atribuir formas concretas a imagens abstractas é também motor de interesse. O Homem tem como tendência auto-projectar-se no mundo que o rodeia e reconhecer em algo, aparentemente comum e banal, imagens próprias. As imagens são usadas como estímulo ao surgimento do desenho.
   A gravação, a descrição por meio da linha fazem-se como tentativa de evitar o desvanecimento da memória. A memória como evocação do passado, refere-se também à acção do Tempo sobre nós. Segundo Marcel Proust, a memória é a garantia da nossa identidade, uma vez que reúne o nosso passado ao que somos. É inseparável da consciência do tempo, da sua percepção como algo que escoa ou passa. O tempo implica sempre uma duração limitada, uma oportunidade de vivência. A memória e a própria criação artística são uma afirmação de existência.
A memória faz parte dessa consciência. Esquecer, é sempre perder alguma coisa. Por outro lado o esquecimento é também necessário ao equilíbrio psicológico. A memória é uma das formas fundamentais da existência humana, fundamental para a individualização e identidade. A ligação entre o desenho e a memória é forte, uma vez que ele serve como registo. Daqui pode-se depreender uma espécie de sentimento de posse sobre o motivo, daqui a Firmação.

   Ana Neves